A princípio este texto seria para reclamar sobre os
insuportáveis latidos de cachorros durante a noite, mas como este fato me levou
a uma interessante reflexão sobre os barulhos internos, resolvi então tirar o
chapéu para os diálogos caninos que entram madrugada a dentro.
Por volta das 22hs e 30min fui me deitar, confesso que não estava com sono, e
pelo visto nem os cachorros estavam, algo os incomodava, gatos talvez. Algo me
incomodava também, fatos talvez.
Os latidos foram me irritando, me virava de um lado para o outro, tapei os
ouvidos com o travesseiro, mas nada surtia efeito, o jeito foi ir até a cozinha
e fazer um chá, a essa altura já era quase meia noite, e os cachorros não davam
trégua, alguns paravam, mas tinha um que, por favor, não parava de latir um
minuto. Tomei o chá, e voltei pra cama. Por um breve instante de silêncio,
respirei fundo, e pensei, até que enfim vou conseguir dormir, que nada, o
terror da noite deveria estar reclamando algo, agora, meus vizinhos, donos do
cachorro, vão ter um sono pesado assim na China... Puxa, será que não estavam
ouvindo? Ninguém mais além de mim estava se incomodando?
Por volta da uma hora da manhã me dei conta que o cachorro não latia mais,
então porque ainda não adormeci? Foi aí que percebi que meus latidos internos
eram mais insuportáveis que os latidos que vinham de fora. Não que eu tenha uma
alma de cão... Nem sei se cão tem alma, se quando morrem vão para o paraíso ou
para o inferno... Não entendo de filosofia canina. Mas, de qualquer jeito me
fez refletir que, na verdade meus conflitos internos tornavam-se gemidos da
alma. E quando a alma geme é porque precisa desabafar. Ela queria ser ouvida,
precisava me ajudar para que fosse libertada do que estava nos afligindo. Mesmo
sem encontrar uma solução imediata para estes conflitos, era preciso pensar
neles, estar com eles, enfrenta-los. Eu poderia ter forçado o sono, ingerindo
um comprimidinho milagroso para estas ocasiões, e calar a alma, a mente,
amordaçar meus conflitos, mas chega um momento que é preciso parar para
ouvir-se.
Como fugimos de nós mesmos, como nos envolvemos com outras coisas para não
prestar atenção no eu, como vivemos abandonados, carentes de si mesmos.
Choramos diante de uma cena triste, nos solidarizamos com vítimas de tragédias,
ficamos indignados com a violência, preocupados com a economia a política, com
a inflação, com o desemprego, com o time de futebol... Perceba quantos são os
cães latindo a nossa volta... E quanto a nós? Que somos a parte mais importante
neste cenário ficamos esquecidos... É, o INSS é um desrespeito, o salário é uma
vergonha, os políticos são corruptos, os traficantes estão dominando os grandes
centros, os planos de saúde são inacessíveis, os remédios são caros, os ônibus
estão sempre lotados, o trânsito não agrada, as obras estão inacabadas, o tempo
está louco, tempestades, tornados, vendavais, enchentes.....Meu Deus, quanta
coisa nos desvia de nós. E quanto nos perdemos de nossa essência, em meio a
esta parafernália mundial globalizada. Tudo parece nos desviar de nós mesmos.
Vivemos sempre para fora de nós, vazios de si mesmos, e quando raras vezes nos
encontramos não gostamos do que vemos... Opa está com pneuzinho aqui, uma ruga
ali, celulite, e por aí vai. É latimos para nós mesmos diante do espelho que vê
refletido um desconhecido.
Cabem aqui estas duas frases de grandes filósofos que se atreveram a olhar para
si mesmo: “Conhece-te a ti mesmo”... “Ame a teu próximo como a ti mesmo”...
E lembre-se, até os cães lambem suas próprias patas. Eles não precisam de
espelhos para saber que são cães. Não precisam de ordens para proteger sua
casa. Você não precisa pedir desculpas a ele porque está de mau humor e por
isso não foi dar aquela voltinha com ele na praça. Ele dispensa qualquer
satisfação sobre isto ou aquilo, porque ele sim, te aceita e te ama do jeito
que você é. Talvez seja por isso que os animais não falam, para que os “seres
humanos” possam desenvolver sua própria inteligência.
AU...AU.
ESCRITO POR MARCIA KRAEMER
27/10/2009